terça-feira, novembro 01, 2005

Destino mortal

"E é preciso um esforço de imaginação para implantar nele o meu destino mortal. Sinal de convergência de todos os caminhos da vida, do ódio, se sonho, da angústia, dos triunfos - ali. Dos atropelos em que se dão e levam caneladas - um pouco me entretenho num filosofar ligeiro. Das conquistas, das derrotas, dos físicos poderosos de força e de esplendor, e dos físicos estropiados de coxeio e de marrequice - um pouco me entretenho. É uma filosofia fácil, a mais profunda. Com ela se ganhou o paraíso quando o havia para se ganhar e se construíram grandes catedrais do pensar - olho errante na dispersão do horizonte. Dos tísicos que morreram no que se chama a flor da vida e dos que suaram que se fartaram para manterem um corpo vistoso com ginástica e banhos frios e ódio aos farináceos, mas que também morreram que se foderam - meu Deus. O homem é um ser extraordínário. O que ele inventa para ver se é eterno."

Vergílio Ferreira, em "Para Sempre"

Inventar a palavra

"Invento a realidade nas palavras que a inventam - se eu soubesse a palavra dessa realidade. Uma palavra de beleza, de paz, de harmonia. De exaltação esperança evidência. Não a sei. De conforto e altura, de alegria. De loucura mesmo que fosse, qualquer coisa assim, qualquer merda assim, oh, qualquer coisa. Não a ouço, nada a sabe. Vou inventá-la rapidamente antes de alguém ma negar- meu amor. Estou bem necessitado de ti, tanto. Um entendimento à minha volta, e o teu olhar calado, cheio de compreensão caritativa. Criar à minha volta a harmonia que não há não houve, e o torpor do meu sono, e a justificabilidade de tudo na vida, de eu estar aqui, de haver morte no mundo."

Vergílio Ferreira, em "Para Sempre"

Fica-te assim

"Fica-te assim, oh, não te mexas. Tenho tanto que dar uma volta à vida toda. Não te movas. Sob a eternidade do sol e da neve. Uma malícia súbita no teu riso, no teu olhar. Um clarão à volta de deslumbramento. Irradiante fixo. Não te tires daí. Instantâneo na minha desolação. Tenho mais que fazer agora. Não saias daí. A boca enorma de riso, os olhos oblíquos de um pecado futuro. Fica-te aí assim, talvez te procure ainda, talvez te escreva uma carta de amor. Daqui donde estou, está uma tarde quente. De amor. "

Vergílio Ferreira, em "Para Sempre"

Ilusão de seres ainda

"Pena pela tua ilusão de seres ainda. E tu já não és. De construíres um futuro com quem tem um futuro para construir. De te imaginares um ser plausível dentro da tua corrupção. De julgares ser, como de fosses. Olho-te cá de cima com o olhar enxuto de uma vida que se cumpriu. Projectos, fantasias com que se preenche o vazio do que ainda se não preencheu, conquistas do que nunca se conquistou, ainda que se tenha conquistado, mesmo com a amargura do que doeu."

Vergílio Ferreira, em "Para Sempre"